10 Poetas de Cabeceira por André Boniatti

10 Poetas de Cabeceira por André Boniatti

“Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo no que se refere à simples informação, depende de muita coisa além do valor que ele possa ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso conhecimento, da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e pouco sabe, um compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para quem sabe muito, um livro importante não passa de chuva no molhado. Além disso, há as afinidades profundas, que nos fazem afinar com certo autor (e portanto aproveitá-lo ao máximo) e não com outro, independente da valia de ambos.”

 

(Antônio Cândido; acessível em: http://literatortura.com/2013/05/26/antonio-candido-indica-10-livros-para-conhecer-o-brasil/, em 30 de maio de 2013)

 

O poeta maior ou o melhor, quanto à luz do gênio, não existe, como muitos deles (Ferreira Gullar, por exemplo; e em outros registros, Drummond, Bandeira) costumam nos demonstrar. Pontanto ler poesia é um ato de intimidade, silêncio; é nos representar n’outra linguagem que não a nossa comum, n’outro ser que nos é semelhante, que somos no poema e, por isso, é para nós constante preferir estes àqueles poetas, conforme o nosso sentimento e o nosso momento, bem como diz Cândido acima.

 

Deveras, ler poesia é comungar e imergir-se, é descobrirmo-nos entre os homens, sob o vínculo, o fio que nos liga a nós humanos. Leva-nos ao mais alto e ao mais baixo de nossa alma e da espécie e nos transpõe para além do íntimo, ao universal. Mas depende de uma relação estabelecida mormente pelo afeto e a proximidade. Assim, surgem em nossa vida aqueles poetas e poemas que, por um lado, nos fascinam a imaginação e, por outro, dizem-nos intimamente, transpondo em palavras os nossos longos silêncios. Poemas como se fossem nossos. A graça, a gratificação desse momento nos faz ajoelhar como em prece e bendizer o que antes não passava de monotonia e transformar o que antes era presa a condição, sem nos mover com o corpo, porém com o espírito.

 

O conhecimento de um ângulo, e a transfiguração de outro; como matéria sagrada (não religiosa), verdade divina (não tendenciosa), pureza, a poesia, quando brota da obra de arte, é assim um momento arroubado da monotonia do mundo, sem muita explicação. É por isso que a poesia escrita, o poema, ainda mais que as obras acerca da história e das ciências, é de uma avaliação que dispensa o aparato técnico; predomina-lhe a intimidade, a subjetividade, o emocional. Isso posto, ignorando aqui outras particularidades que se referem a dados mais estatísticos: importância histórica, política etc. do autor ou do poema, estilística, biografia e assim por diante.

 

É de extrema cautela mencionar, pois, como fala Antônio Cândido no excerto supracitado, um número definido de obras acerca de um certo assunto, dentro de uma certa intenção, mesmo que sob determinado aspecto. Contanto que o limite é necessário, quando se corre o risco de formar-se uma lista infinita de nomes, considerando o prazer fluido de cada obra em que, durante a leitura, nos sentíamos em êxtase. Também é necessário que se limite a fala a um gênero único, para que não se torne por demais abrangente a indicação. Pois a poesia não é só versificação. Há textos de extrema poesia escritos em forma prosaica. Entretanto, limitando-me a esses pareceres, tentarei escolher meus 10 poetas de cabeceira aqui.

 

Não me vem primeiro nome à lista que não Manuel Bandeira (1). Como é fascinante, mesmo, a sua poesia. Livre do cunho intelectualista, envolto da emergente reflexão moderna da língua, Bandeira usa-se da infância e da inocência para se expressar; fala como uma criança, mas que cantasse quando falasse: simples e sem malícia. O tempo todo, mesmo em seus poemas elaborados mais de forma clássica, parnasiana, como no meditativo Soneto Inglês Nº 2. Neste, embora a técnica lhe seja regular, desde a sua objetivação histórica em forma rítmica de 3 quartetos e 1 dueto, versificação “shakespeareana”; contudo, a declamação segue em ritmo tenro, atenuado, movido por palavras de fácil assimilação, arredondando as bordas do soneto numa transição macia de verso para verso. Uma estrutura clássica, mas moderna, nova, (inovada), ao coração dos interlocutores globais. Um dos aspectos da poesia de Bandeira que mais me encanta, deveras, é este: a proximidade que cria com seu leitor, o doar-se infante ao nosso coração e não diretamente à reflexão ciosa, ao raciocínio (nem da técnica nem de um vocabulário arcaico, nem do conteúdo profundo, que pode efetuar-se em diversos níveis de profundidade, desde a criança ao mais sábio adulto).

 

Do Manuel, partindo do formato de sua escrita poética e de seu momento, me trago à mente o Craveirinha, José Craveirinha (2), de Moçambique. Poeta maior de Moçambique, como dizem. Conhecendo-o um tanto mais miudamente que o Bandeira, falo dos versos esparsos e tão conexos que dele li e que cravam na minha cabeça como máximas verdades, como verdades celestiais; contanto, jamais inertes, resignadas ou contemplativas, como gritos abundantes de revolta e desejo. Craveirinha incha o peito do leitor com um tipo de sentimento que une suor, orgulho, força, robustez e docilidade, e, às vezes, feminilidade onde só seria possível a espada e a batalha. Sua negritude é consciente de toda a supressão imposta a seu povo, mas não deitará em passados lamentos; pelo contrário, explodirá em brados anunciando um’outra aurora, pela morte ou pela paz, contanto em postura e bravura indirimíveis. Penso pois, nessa sua capacidade de nos fazer levantar não sei de que forma, mas jamais abnegada ou alienada. Insurgimos por dentro, seja pela fé ou pela resistência, ou pelo amor. O poeta da força, na minha símplice leitura, e ainda incompetente, do autor.

Passo deste, assim, para o Carlos Drummond. Não é apenas elencar grandes nomes, ou talvez seja; mas Carlos Drummond de Andrade (3) me vem à mente como as duas coisas: leitura obrigatória e maravilhada. Leitura obrigatória por ser um clássico. Sua técnica é tal qual a camoniana d’Os Lusíadas, para mim, contanto moderna. Poemas de reflexão rítmica densa, que trazem em sua versificação a própria história da literatura universal. Metapoesia, em todas as suas nuances; digo, sempre metapoesia. Drummond tem a grandeza ou a maldição de refletir, trazer à tona e transformar toda a canonização literária transpondo-a para a atualidade em forma dúbia de amor intencionado: raciocínio e paixão, inalienáveis. Imerso, decerto, em suas leituras profundas e profícuas da escrita artística e histórica, creio que tenha incorporado (mais que simplesmente aprendido) uma vastidão estilística em seu ethos, que em projetos e fases lhe viessem para as mãos e derramassem-se em poesia para nós leitores. No entanto, não havemos de nos prender à técnica: sua imensidade inchava-se da verve poética, do sonho e da sombra, e da inovação. Complexo e reflexivo, penso eu, e com momentos líricos plenos, lidos sempre em face da teia social em que se enredara, lançando-a, contanto, ao cosmos e à universalidade de forma magistral. Mente ímpar.

 

Seu sentimento de “gauche” na vida, em exceção do reconhecimento que fez de nossa pequenez no universo, me remete, em sequência, para o poeta mais “torto” de toda a história, Charles Baudelaire (4). Afirmo isso não como uma verdade, mas como um sentimento em virtude de sua obra poética. Quando se lê Baudelaire, o espírito mina-se de contrariedades, contradições; retoma-as, reflete-as, apavora-se com elas e, ao fim, jamais torna a ser brando como o pudera: entorta-se. A experiência de se ler o autor faz com que desnorteemos imediatamente nossas vistas, transfigurando ou obscurecendo nossa visão parcial de mundo; bem como sua poesia o fez com a própria história da literatura. Uma vez submersos no mar rebelde e subterrâneo deste poeta, jamais voltamos ao doce ar de nossas adolescidas reflexões. É como se nos emergisse de dentro a derradeira angústia, mas também a coragem e o ataque. Cansamo-nos em suas páginas da mediocridade humana imposta pelos liceus da boa conduta, que nos levam sempre ao desprezo de nós mesmos. Erguemos nossa voz recôndita com a sua e levamos a todos um grito de renúncia e de ressurreição; tal qual o anjo Lúcifer das páginas de John Milton, no Paraíso Perdido, quando brada: “no Inferno reinar a nós nos fará mister, em face de curvarmo-nos escravos perante um Céu que nos oprime!” (tradução minha). É, creio, a mesma voz que emerge do interior de Baudelaire, o mesmo grito de revolta, levando-nos, leitores, às mesmas consequências, como uma maldição. Por isso, sua poesia não é apenas fascínio, contanto insurreição.

 

Mais brando, porque de romantismo menos rebelde talvez, embora também cavernoso e escuro, ouvimos erguer-se a voz de Edgar Allan Poe (5), que a mim não me fugiria citá-lo, jamais. Contista, sua poesia talvez seja menos discutida no Brasil que seus contos, mas clássicos há dele que, enquanto houver história, creio que se lerão em voz alta, com entusiasmo pleno e meditação. O Corvo, seu maior exemplo, não se trata apenas de um poema romântico, mas de um cântico, um Hosana à literatura e à genialidade, ao mais alto da capacidade humana (como lhe é comum em sua poesia). O suspense, o clima e o horror da personagem envolta pelo mistério nos tomam do começo ao fim da leitura, sem fôlego, sem ter para onde fugirmos. Pois seus versos, inchados de significado em cada palavra, cantam-se sonoros independentes da voz. Seus momentos líricos são epifânicos, musicais, como corais que levantassem a voz no teatro, graves: com litanias, atos de contrição, culpas internas e noturnidades. Poe inunda-nos. E sua poesia cantante me faria voar direto ao coração libertário e apaixonante de nosso grande poeta brasileiro, Castro Alves. No entanto, impede-me o limite de 10, tendo eu que seguir a um outro, que me recorda minha própria noturnidade, traz à tona minha alma mais simples e corriqueira.

 

Emergindo assim, do coração romântico e decadista desses autores acima, trago ao calor da mente agora Omar Khayyam (6) e seus Rubaiyat. Não tenho qualquer conhecimento sobre sua língua mãe e apenas parcas pesquisas e imaginação acerca do ritmo real de seus versos, de sua pronúncia e cadência originais, mas toda vez que entro em contato com uma diferente tradução de seus cantos, por extenso ou versificados e ritmados, fico entregue à sua poesia. A sua angústia, a sua boemia tenra, suave aos ouvidos, contanto mordaz, durante a natureza me extasiam, levam-me aos sertões de mim. Suas palavras são como provérbios que nos afetassem a direção da vida, que nos fizessem sentar e olhar bem por que estrada andamos, do princípio até ao ponto onde queremos chegar. Ao ler Khayyam, sinto uma paz imensa, não obstante o sentimento angustiante, a dor. Imerge-me, somente, absolutamente, naturalisticamente.

 

E a veia de Khayyam, angustiada e desértica, rescende-me um poeta nosso, novamente brasileiro: Ferreira Gullar (7). Gullar é poeta semelhante a Drummond a meu ver, contanto de verve objetiva. Drummond é bastante obscuro, obumbra-se dentro de si, em “aletria”, enquanto Gullar preza pela maior objetividade linguística. É o poeta pós-moderno por excelência. Sua linha de raciocínio é sempre audível diante de seus versos, não que por isso perca a sua linha patética. A realidade social, nele, alcança a realidade cósmica sob um mistério efetivo: não parece sair da objetividade, quando, de repente, nos arrouba e nos leva para dentro e longe de nós. A realidade é sim sobremaneira o seu impulso poético, a ironia, o desmascaramento, a envergadura sociopolítica; creio que esta última seja o que o lança à contemporaneidade, distanciando-o de seus predecessores, vinculando-o a José Saramago, por exemplo: na reconstrução e transformação da história. Concreto, ligo-o ainda à sequencialidade de João Cabral de Melo Neto, outro imenso poeta. Mas o que me atrai a seus remansos é a superação da experimentação moderna e a transformação do poema em linguagem sólida, de paixão pétrea (menos pétrea que Melo Neto) e inventividade móvel, renovada, não mera experiência nunca. Sua paixão nítida e crua, que — com asas arquitetônicas — é capaz de voar...

 

Capaz de voar também, mas com asas de penas e ossos de pássaro, é a poesia campal e feminina de Helena Kolody (8), a que me reporto quase como um contraste, lembrando a lírica tênue ocorrida em poetas como Cecília Meirelles e Vinícius de Moraes. Perante a paranaense ucraniana arraigada aos matizes e aos valores da terra, imersa pelos campos e gramagens, impossível não se apaixonar por alguns de seus versos. Seja a criança ou o professor, ambos têm a mesma sensação, não importa a maturidade. Acolhendo desde os modelos orientais, há sua poesia mais complexa, mas a poetisa é clamada mormente em seu imenso poder de concisão. Três frases, um haikai apenas, mas nos vem aos olhos uma imensidade... entre paisagens, noites, estrelas, tristezas, alegrias, esperanças... A feminilidade é universal e é capaz de desembrutecer o mais rígido e cruel mármore, de fazer crer o mais frio coração. O tamanho de sua beleza é que me extasia, conduz-me sempre pelo caminho das minhas raízes, do meu amor, do meu pequeno chão — que nela se faz imenso... Dócil e delicado seu verso. Amoroso.

 

Mas se Kolody nos chama para as nuvens, nos faz clamar a força do sonho e da tênue emoção, há um poeta que nos evoca na intimidade, que nos convoca à objetividade, que nos quer fazer homens e irmãos: Walt Whitman (9), o grande democrata e humanista. Deveras, todos os títulos que possam render a ele a insígnia de cantor da humanidade lhe serviriam, desde que em busca de expressar a fé que Whitman impunha à sua redenção. Ele nasce de um sentimento de comunhão, de amor ao próximo. Mas esse próximo não é nele nem a alma, nem a obrigação, a imposição, o julgamento, a cor; o próximo, a ele, é o corpus, o corpo, a chama, o calor, o amor, a energia; é o todo, a unidade, a união, desde o universo além; o instinto, a carne, presentes na natureza natural. Imagina um grande abraço mútuo, cheio de irradiação, de paz. Invoca os homens agora de dentro de um só coração, a humanidade, ignorando quaisquer fronteiras de terra, raça, ou o que quer que sejam outras diferenças. Cantor da democracia, acredita no homem como espécie fraterna, que se alimenta do afeto e do toque, assim o vejo. Cantor maior da liberdade, desde a invenção do verso livre, desenha em seus versos o livre sexo, a livre palavra, o livre toque, toda emancipação possível. Sentimo-nos albergados na sua paz, quando o lemos, e no seu amor, e por isso o amo tanto e seu pensamento me acompanhará até a morte.

 

E, por fim, dos salmos entoados por Whitman, trarei à tona o meu poeta por excelência, aquele a que a todo momento me torno. Talvez por fazer parte da minha alma quase como se tudo que tenha escrito fosse aquilo que hoje sinto. Não há explicação plausível para a minha ligação com Fernando Pessoa (10); ou melhor, há: a comunhão na poesia. Como se cada vez que o lesse, outra vez me encantasse, diferente a cada momento, ou igualmente, como desde o começo. Pessoa para mim hoje é como um amigo íntimo, com quem converso. O seu Alberto Caeiro, meu poeta dileto, desmistifica o mundo e desnuda-o para nós, mostra-nos como estamos errados em impor pensamento e mistério às coisas, ensinando-nos a ser felizes com naturalidade. E assim creio, conquanto a impossibilidade de acompanhar em alma o seu raciocínio. A liberdade de toda metafísica e religião, como desnecessárias, como falsas, já que para Alberto passar para além da natureza natural seria traí-la. A sua controversa ou contraditória filosofia nos faz acordar, de manhã, tirar seus versos de sobre o peito e desnudar o mundo lá fora, tudo de novo, mas renovado. Já o seu Álvaro de Campos, extremamente febril, é a explosão sensacionista que, creio mesmo, fora o próprio coração recôndito do Fernando palpitando, aquele que podia gritar sem nenhum receio. Só poderia ser futurista, um tal ser imerso no ópio da atualidade e da efemeridade. Se me formulam nos heterônimos de Pessoa duas imensas tentativas — realizadas: a leitura e interpretação das eras, desde sua matemática até a sua mística esotérica, representadas na concretude de pessoas diversas envoltas num plano de representação histórica e interpretação fantástico, ao ponto da despersonalização; e, ao mesmo tempo, a negação e a interrogação diante das ideias canônicas historicamente construídas, desde a inversão (em Caeiro e Campos, por exemplo) da ideia platônica: a efemeridade essencial. Mas ainda há sua outra poesia, a obscura, a que não restou assinar senão como Pessoa ele mesmo: um manancial de sensações cotidianas levadas ao mais alto grau da linguagem e do sentimento, e do esoterismo, arroubando-as da cotidianidade e lançando-as à eternitude. Um estupendo espasmo desde o fogo da terra até o Big Bang. Para mim, Fernando seria o poeta-pai, poeta-chave, poeta-luz que me ilumina. A minha própria poesia brota da dele, nasce-lhe, às vezes, nem sei se renovada ou a mesma. Mas não me sinto angustiado com isso, me sinto feliz. Sinto-me feliz porque a poesia que dessa gente emerge torna-se em mim também o que me emerge, a palavra que me conduz para cima. O sonho que não é senão a única realidade, além do trabalho diário e do vazio. E por isso os lemos. Como disse um dia o crítico Jô do Recanto das Letras, “buscando a luz que justifique ‘nossas’ vidas sem lógica”.

ANDRÉ BONIATTI
ANDRÉ BONIATTI

Doutor e Mestre em Literatura, é professor, poeta, dramaturgo, contista, roteirista, filósofo, tradutor, crítico de arte e literário, diretor teatral e artista visual paranaense. Nascido no Distrito de Nossa Senhora da Penha/Corbélia, lecionou as disciplinas de Literatura Universal e Clássica, Cultura Brasileira e Literatura Africana e Afro-brasileira na Universidade E. do Oeste do Paraná, entre 2019 e 2022. Publicou principalmente os livros "Fragmentos do silêncio (versos esparsos)" (2006) e "A estratégia do Ser: Aconselhamento aos possíveis jardineiros do mundo" (2019).

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